terça-feira, 2 de setembro de 2014

Sobre um alguém incomum

Poucas profissões permitem tanto a capacidade de aprendizagem, circulação e mudanças de pessoas como a de professor. A cada semestre, já que o sistema acadêmico universitário brasileiro, via de regra, é semestral, me deparo com um conjunto de novas criaturas com suas histórias de vidas, sonhos, medos e ansiedades. A cada semestre o repertório de expectativas aumenta; a delas em relação a mim, as minhas em relação à deles.

Como eles são? Penso eu... Como são os professores? Pensam eles... E assim, perpetua-se um ciclo renovado nas lides da pedagogia, pedagogos, pai das crianças. É dessa forma que tenho me sentindo recentemente, isso porque a cada semestre, a cada ano, eu envelheço ao passo que as novas turmas são constituídas de pessoas cada vez mais jovens. Já se foi o tempo em que a distancia entre minha idade e a deles era pouca. O mecanismo de Bolt, qual o relógio do tempo não para, funciona como uma engrenagem perfeita, muito mais para mim. Não me refiro a Bolt, velocista jamaicano, e sim ao físico que descobriu a impossibilidade da máquina perfeita.  

Todas as turmas são especiais ao seu modo, todos os alunos possuem suas características: engraçados, tímidos, envergonhados, exibidos, inteligentes, religiosos, revolucionários, ansiosos, afoitos, conservadores, enfim, um mosaico da tipologia humana.

Neste semestre que se inicia me deparei com um aluno sui generis. Ele é esquálido, corpo de jogador de futebol, anda mancando em virtude de uma contusão em seu joelho decorrente de uma pelada (partida de futebol em campo de várzea), esse é um sonho frustrado dele, cabelo aloirado pintado artificialmente, engraçado, despojado, ingênuo e muito, muito contemporaneamente retrato de uma época que mistura sonhos e possibilidades, esperanças e frustrações, perspectivas e clareza da ausência de projetos sociais e educacionais que possam levar o Brasil a um patamar mais decente. Na verdade projetos há, mas os embates em torno deles levam a uma sensação de confusão quanto ao que seja sociedade, o que é melhor, como atingir tal condição, qual modelo seguir.

Esse aluno é um sintoma disso. Ele e a turma são oriundos de um ensino médio defasado, cujos professores mal remunerados, desprestigiados, despreparados, desrespeitados em suas condições ancilares de construtores não só de conhecimentos, como de princípios políticos norteadores da vida, muitos já não transmitem paixão no que fazem, já se descolarem da condição ontológica do que é ensinar, para que, por que e como.

Ao chegarem ao ensino superior encontram um abismo entre o que é ensinado ao longo dos ensinos médios e fundamental e os conteúdos, abordagens, metodologias distintas ministradas no ensino superior. Abre-se um debate acerca da função da Universidade, o que fazer, como proceder, qual deve ser sua ação: proporcionar uma espécie de nivelamento dos conteúdos ou explorar os procedimentos relativos ao ensino superior. Cada vez mais estou convencido do papel da Universidade, sua omissão em relação aos ensinos fundamental e médio, sua entropia e distanciamento da sociedade, numa espécie de autoreferenciação com seus códigos quase fechados, linguagem hermética.

Esse aluno, cujo espirito despojado é compartilhado pela turma, igualmente receptiva, alegre, engraçada, inteligente e ávida por conhecer, é carinhosamente alcunhado pelos seus pares como “filósofo contemporâneo” por suas tiradas geniais, abstraídas de suas vivências, pelo seu humor refinadíssimo e pela sua capacidade catártica de sempre correlacionar um fundamento filosófico com situações absolutamente triviais, tentando buscar ilações, numa reelaboração a partir de suas formas de apreensão da vida.

No fundo ele é um filósofo contemporâneo sim, mas ao seu modo, a partir de suas representações e de como associa uma abstração trazendo para seus códigos internos de reelaboração e ressignificação dos conteúdos. Não adianta a Universidade fechar os olhos e simplesmente criticar a ausência de conceitos que não foram desenvolvidos ao longo da vida  estudantil, e sim, utilizar tais formas de apreensão da vida a partir desses jovens e perceber como eles depreendem as relações sociais, quais os nortes desta sociedade contemporânea complexa e multiforme, e como pode ajudar na construção de novos sujeitos, sem perder de vista suas especificidades.

É um desafio para todos nós, inclusive para eles. Para os professores porque é preciso compreender a dinâmica do tempo, das mudanças, das múltiplas formas como o conhecimento se apresenta e como pode ser abordado. Para eles, pois que precisam fazer um exercício continuo de aprendizagem, absorver a necessidade de uma dinâmica de leitura, de refazer estruturais mentais, se abrir para novos horizontes e apreenderem que a vida é um continuo fazer, aprender, resignificar, reelaborar. A vida é como um jogo de pinball, conforme a rebatida da bola, a vida, segue um caminho ou outro, mas o destino é sempre o mesmo, o vórtice da existência.

Quão bom seria se amadurecêssemos incorporando novos processos sem perder a ingenuidade, meiguice, humor deste jovem e destes jovens de sua turma e época que sempre estão nos ensinando... Inclusive que não devemos nos levar muito a sério, aliás, nada, a vida é leve, são os anos que vão pesando sobre os nossos ombros.   

  
     

             

8 comentários:

  1. Gostei, ate porque a vida é um dom, alguns aproveitam, outros reclama, uns se lamentam, outros choram, outros dão rizadas, outros aproveitam para fazer maldade, enfim cada um faz da sua vida o que acha melhor..
    Eu apenas vivo, e compartinho da minha vida com que está ao meu redor... de uma forma bem simples, mas intensa, ate porque é preciso saber viver.......

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    1. que bom que gostaste. Acho que a vida é singela demais, aproveita-la em suas filingranas deveria ser um dever..abraços

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  2. É indiscutível a capacidada mútua de aprendizagem entre professores e alunos e a forma com é abordada essa interação no ensino superior deve ser revista, fugir um pouco dos padrões tecnicista e ir em busca de uma relação com a vivência de cada um aumejando entender o ser humano na sua particularidade que a final de conta diz muito sobre cada um de nós e do meio social que estamos incluídos. Assim abre um lequê enorme para novos rumos no aprender educacional, conciliar nossa vivência as técnicas aprendidas no meio acadêmica e aplicá-las nosso dia a dia em prol da evolução. Bom texto, eu me sentir ouvido e compreendido !

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    1. Fico feliz em saber que foste contemplado, também penso isso da educação, acredito piamente nos encontros e possibilidades dela.

      abraços

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  3. É de uma visão admirável a sua, mediante a um meio acadêmico que torna o ensino ainda mais pesado; porem você prof. demonstra que se pode ir além e romper com o tradicional mais ainda assim possuir uma consciência critica! você sem duvida é um exemplo pra todos os seus alunos, pois os ver não só como alunos mais também como a mudança para um sistema que aprisiona mais que libertar. Somos todos jovens e espelhos de uma educação reprodutiva e não pensante, porém ainda temos o desejo de mudança!!

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    1. Obrigado querido (a), mas na verdade não sou nada, apenas um amante daquilo que faço e procuro a cada dia retirar de tudo aprendizagens..

      abraços do Henrique

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  4. Excelente análise, professor. Acredito que de fato estamos em um país cujo sistema educacional encontra-se em um estado defasado,de maneira que alunos devem se utilizar de uma espiritualidade para entender e questionar determinados conflitos. Infelizmente nem todos os professores acabam abstraindo o melhor de seus alunos para que lá na frente se construa um indivíduo pensante e capaz de questionar com criticidade os conflitos de âmbito social.

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    1. Obrigado BAh NEtes. A educação de fato é um grande desafio para os que estão nela. É necessário uma reflexão diária, compromisso e vontade de mudança.

      abraços

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