quinta-feira, 10 de julho de 2014

Danke, Deutschland 7 x 1 Brasil

Há quem pense que tudo no Brasil é tristeza após a "humilhação vexatória" por ter perdido para a Alemanha de 7 X 1 numa semifinal em casa, mas não é não. Antes de qualquer coisa, a família de Barbosa, goleiro da seleção brasileira de 1950 que perdeu para o Uruguai em pleno Maracanã por 2 x 1 deve estar aliviada. Ele foi injustamente acusado do vexame cognominado de Maracanaço, quando na verdade não foi, e sim, a arrogância brasileira em comemorar a vitória antes do apito final, além do que, perder por 2 X 1 não é vexatório, sobretudo para aquele timaço do Uruguai.

É que como uma sociedade ufanista, extremamente emotiva como o Brasil, é difícil fazer o exercício de reflexão e assumir as próprias responsabilidades, erros e incompetências, acusar alguém ou procurar um bode expiatório é mais cômodo. Naquele caso foi Barbosa, vitima do racismo e da falência do discurso de democracia racial brasileira. 

E nesse último, da derrota para a Alemanha em casa, numa semifinal batendo todos os recordes negativos? Estão ainda procurando os culpados e me parece que o arrogante técnico Luis Felipe Scolari será a bola da vez, de fato tem muita participação nisso, mas não é o único.

O artigo escrito pelo tetra campeão e Deputado Federal, Romário, ex-jogador do Vasco, Flamengo, PSV, Barcelona, Sevilha, Fluminense, sobre os casos de corrupção na CBF (Confederação Brasileira de Futebol) é bombástico e revelador do grau de desestruturação e montagem de um esquema de corrupção montado em cima do futebol.

A utilização politica do futebol não é nova e neste ano de 2014 as coisas ficaram mais expostas. Há quem vá discutir as táticas de Scolari, a convocação, a péssima preparação fugindo do foco, o excesso de marketing, blá, blá, blá, é tudo verdade, mas é apenas sintoma, não a origem do problema.

O futebol brasileiro, usado como válvula de escape ao nosso verdadeiro fracasso, o social, fez uma opção, leia-se, os dirigentes esportistas, por alavancar economia, mercado consumidor, pane et circense, falta de seriedade e compromisso, corrupção, lucros adquiridos pelo espetáculo midiático futebolístico. Isso merece uma reflexão.

O futebol se tornou sucesso no Brasil por um conjunto de fatores (já nomeie alguns no artigo: o legado da copa 2014, há algumas semanas), dentre eles; espaços destinados ao lazer que serviam de preparação aos nossos futuros jogadores; ausência de profissionalização permitindo a espontaneidade dos campeonatos de várzea e a epifania a partir dos chistes dos dribles; gols; comemorações; clara compreensão de que era um instrumento de reconhecimento social e racial, vide a estrutura perversa e elitista das estancias burocráticas brasileiras; um sentimento de vingança em relação aos ricos, já que no campo de futebol as diferenças sociais se aniquilavam, o que importava era o talento. Exemplo disso na Argentina é o Maradona: nasceu em bairro pobre, disse aos 09 anos que um dia compraria uma casa para sua mãe, se filiou aos movimentos sociais de seu país e vingou a Argentina por conta da guerra das Malvinas derrotando a Inglaterra num gol antológico na copa de 1986 no México. Resultado: virou deus...Tem até a religião maradonista.

No Brasil racista Nilton Santos, Didi, Vavá, Pelé, Garrincha foram cultuados. Poderiam ser de outra forma? Ao longo dos anos nós brasileiros nos acostumamos mal em ver Garrincha fazer com adversários de países desenvolvidos uma espécie de desforra. O país sempre foi motivo de piada internacional, no futebol, nossa vingança.  Era uma forma de sermos respeitados já que os dados sociais eram e ainda são de chorar.

O problema é que o processo de internacionalização do futebol virou empresarial. Jogadores cada vez mais cedo rumando para a Europa virando sonho de consumo das novas gerações, a tal ponto que muitos jogadores sequer são conhecidos em clubes brasileiros, inclusive os da seleção brasileira pouco atuaram no Brasil.

Ganhando milhões de dinheiro poucos assumiram posições politicas sempre optando pelo estilo Pelé de fazer politica, ou silenciando ou omitindo-se, ou até mesmo no caso do próprio Pelé apoiando a ditadura, depois sendo ministro de estado. Muitos jogadores sempre optaram por ficar bem na fita. Exemplos de sucesso adoram exibir seus carros, roupas de grife, espelho de quem venceu pelo esporte. As questões sociais sempre foram deixadas de lado.

O futebol brasileiro fez uma dura opção pelo elitismo, expulsando os pobres dos estádios com ingressos cada vez mais caros, vinculando diretoria dos clubes à torcidas organizadas, sendo patrocinadas em troca de apoio administrativo. Assistiu-se um espetáculo de horrores com guerras de verdadeiras gangues, fruto da ausência de perspectiva social e da impunidade.

O futebol, como qualquer coisa no capitalismo, virou uma mercadoria, um espetáculo midiático e financeiro em busca de mais dividendos tendo por detrás uma megaestrutura empresarial, inclusive sendo fulcro de lavagem de dinheiro. Clubes viraram empresas, jogadores, trabalhadores sem vinculo sentimental com os clubes que os revelaram. Qual o resultado disso? Um longo declínio técnico dos jogadores em busca de fama deixando de lado a paixão e a feição cultural do povo brasileiro por futebol por necessidade de vencer, leia-se, dar resultado. A derrota da seleção de sonhos canarinho em 1982 teve grande parcela nisso. A vitória do pragmatismo tencionou tal esporte a ser um apanágio burocrático.

O orgulho brasileiro em driblar, gingar, foi substituído pela vergonha em não dar resultados. O último título brasileiro tinha sido em 1970 com a melhor seleção de futebol de todos os tempos. 24 anos depois o Brasil seria tetra campeão mundial com um futebol horrível, mas eficiente. Dai pra frente o futebol brasileiro nunca mais seria o mesmo.

Os episódios do vexame histórico da derrota de 7 x 1 para a Alemanha são o ápice do começo do fim de uma era do futebol. Toda a farsa montada em torno do evento veio às claras; a falta de organização na preparação do evento; falha na reforma dos estádios; aeroportos; problemas de mobilidade urbana acompanhada de uma onda de protestos sacudiram o país em 2013 e também em 2014. A FIFA foi desmascarada: não passa de uma entidade empresarial cujo objeto de produção é lucrar com a atividade futebolística, escondendo uma rede de interesses e intervenções politicas. O Brasil seria a cereja do bolo: isenta de impostos exatamente na copa que deu maior lucro a entidade, no país que tanto ama o futebol.

Estava tudo pronto. O evento se aproximava e as manifestações arrefeciam-se. Os grandes transtornos em decorrência da falta de organização não comprometeram o evento, a média de gols é a mais alta desde 1982, um belo espetáculo apoiado por um povo hospitaleiro que foi às ruas comemorar o evento, a seleção brasileira passando de fase, um evento tecnicamente surpreendente como nos velhos tempos... Até cruzar nosso caminho uma seleção chamada de alemã.

Absurdamente simpática com o povo brasileiro, a seleção que mais interagiu com a sociedade numa demonstração clara de empatia e encantamento, os alemães se preparam durante 6 anos para tal copa e reestruturam o futebol após a derrota para o Brasil na Copa de 2002, jogaram como se fossem brasileiros, tecnicamente muito superiores. Foi a vitória da disciplina contra o desleixo, da organização contra o improviso, do comprometimento versus a farsa da utilização sentimental e pressão por jogar em casa, da simplicidade contra a ostentação e opulência, da serenidade versus o escarnio e deboche, do profissionalismo contra a utilização ufanista e midiática de uma seleção que é a própria cara do país: odeia receber criticas, tudo se ofende, não é acostumada a contraposição, ao diálogo, vide a forma prepotente como o técnico Felipão se relaciona com as criticas e a imprensa, sempre disposto a brigar.

Somente uma derrota dessa envergadura seria capaz de mexer com as estruturas de nosso país. A humilhação legou aos brasileiros a necessidade de enxergarem futebol apenas como um esporte, aliás, cada vez mais longe dos setores mais pobres, de repensar a dependência que temos de ver a pátria de chuteira, como se a seleção fosse a nossa tabua de salvação. Já foi, mas não pode ser mais posto que seja muito pouco, a vida depende de outros fatores e não apenas do futebol. Precisamos de saúde, educação, moradia, segurança, mobilidade, distribuição de renda, se vier acompanhada de um bom futebol, ótimo, senão, paciência.

O curioso dessa Copa de 2014 é que toda a farsa montada em torno dela desmoronou: pululam os escândalos de venda de ingressos envolvendo altos escalões da FIFA, o caso do suposto suborno em torno da Copa do Qatar em 2022, os compromissos sociais que a FIFA não cumpriu, como o do tatu bola, por exemplo, mascote do evento, dentre outros.

Se o Brasil vencesse a Alemanha ou perdesse de poucos gols ou nos pênaltis nada dessa ressaca sadia estaria acontecendo. Se ganhasse a copa a histeria coletiva seria o vórtice. Somente uma débàcle como essa é capaz de abalar convicções e certezas. A primeira delas é que não somos mais já algum tempo o país do futebol e nem possuímos os melhores jogadores porque a pragmática de vencer verteu a habilidade em jogar numa relação simbiótica de força e velocidade, ou seja, a arte de jogar que estava no imaginário coletivo se perdeu pela implosão autossugestionada em apenas derrotar o adversário usando a força física. A segunda convicção é de que não há mais espaço para a politica de pão e circo à custa de dinheiro público, sem responsabilidade e compromisso social. O preço é alto demais. A terceira é que a péssima fase de preparação para o evento fez surgir um sentimento de revolta e indignação porque todo o circo foi bancado com dinheiro dos contribuintes, uma quebra do compromisso quando foi firmado de que quase todos os gastos seriam pagos com investimentos privados. Resultado: quando os brasileiros disseram que o futebol não os representa, uma longa modificação na concepção politica começou a se processar.

O fato de nossas contradições terem sido expostas mundialmente foi outro fator positivo. Apesar da boa imagem em geral que ficou nos visitantes, as feridas foram abertas e escancaradas e passamos a ser pauta de debate internacional não pelo avanço das questões sociais, mas pelo que ainda de muito falta. É claro que a simpatia e a hospitalidade dão ao mundo um toque de esperança quanto à crueza das relações sisudas e pragmáticas, até mesmo impessoais, mas afora isso, no geral, soçobram criticas a quase tudo.

Do lado alemão, fiquei embasbacado pela relação de respeito para com os brasileiros. Recusaram-se a tripudiar da dor dos jogadores, foram extremamente respeitosos e carinhosos depois do jogo, literalmente tiraram o pé no segundo tempo e ainda postaram nas redes sociais que era necessário respeitar a tradição do futebol brasileiro. Estavam fazendo média com os anfitriões? Duvido... Isso se chama educação e a consciência de que a vida é maior que o futebol, logo eles que já perderam tantas finais.

Portanto, para o bem do futebol foi muito importante aquele vexame. Se a seleção brasileira ganhasse a copa do mundo com aquele futebol medíocre, bagunçado, desorganizado, seria um desserviço ao esporte. Só lamento que as coisas na CBF não vão mudar. Conseguiram macular um traço cultural do povo brasileiro, uma herança de sentimento e vinculação artística. No entanto, como todo processo de mudança politica estamos no começo do fim, nesse caso, não do futebol, mas de uma modificação nas relações de sociabilidade qual o futebol é caudatário e símbolo ao mesmo tempo.

Danke, Deutschland, obrigado, alemães, nem toda derrota é fracasso, nem toda a vitória é alegria. Se as feridas deixadas pelo massacre servirem como suporte para um processo de mudança, nunca uma derrota terá sido tão benéfica. Futebol não é apenas futebol, sobretudo em se tratando de Brasil.

Só lamento pelos jogadores que ficaram marcados pela derrota e pela tristeza do povo brasileiro que tanto esperou por esse momento e abraçou o evento fazendo da Copa de 2014 a copa das copas. Tudo bem! Um dia a dor passa, ainda que levem 64 anos, como a da família de Barbosa que esperou para viver e respirar aliviada.                                     
     


                 

Um comentário:

  1. Excelente!
    O que devemos dizer: Obrigado Alemanha!!! É isso mesmo.
    Sem dúvidas a Alemanha exorcizou Barbosa, esse é um dos legados da Copa 2014.
    A Alemanha é hoje o verdadeiro país do futebol, pois, consegue levar aos seus estádios a melhor média de público, tem a liga mais competitiva. isso traduz muito do que nos falta. A Copa não foi do grande público brasileiro, isso você diz muito bem.
    Temos que agradecer e aprender com os alemães como competir e como ser cordial e não arrogante! A seleção da CBF é uma grande farsa e o legado da Copa foi o desbaratar destas maracutaias.
    Foram tão nojentos que transformaram uma competição de futebol é uma guerra e perderam a oportunidade se divertirem em uma Copa em casa! É triste, esqueceram de dizer que só era futebol e que o esporte deixa um legado de solidariedade e disciplina e é o que nos falta um pouco na politica, educação, saúde! Que o esporte desperte muito mais em nossos corações.

    ResponderExcluir

Entrevista com Arton, de Sirius. Parte II

  Entrevista realizada no dia 14 de fevereiro de 2024, às 20:00, com duração de 1': 32'', gravada em um aparelho Motorola one zo...