sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Sobre a polêmica do beijo gay

Se alguém quiser saber o nível de compreensão social de uma nação acerca de temas com
a homo afetividade, basta acompanhar o final de uma novela de televisão.

Em primeiro lugar, impacto de final de novela é uma característica eminentemente brasileira. Existem novelas em várias partes do mundo, muitas até brasileiras, mas somente aqui esse fenômeno se iguala a uma disputa de copa do mundo. 

Novela enquanto gênero lítero-televisivo é uma marca latino-americana. Tal gênero com tais configurações nasceu no México entre final da década de 60 e inicio da década de 70 do século XX, mas foi no Brasil que ganhou ares hollywoodianos.

O sucesso das novelas esteve e ainda está durante muito tempo atrelado a vários fatores: baixa escolaridade dos brasileiros, ausência de conexão entre conteúdo escolar e grade televisiva, profissionalização do setor midiático, alienação ideológica, atrelamento à ditadura militar  -  controlava o conteúdo das emissoras, já que se trata de uma concessão pública-, até o tempo que os televisores ficam ligados, em média 16 horas por dia, uma das maiores taxas do mundo.

Desde a década de 70 do século XX a Rede Globo de Televisão passou a ditar o debate publico, a eleger questões politicas do dia-a-dia, constituir ídolos e heróis, jogar para o limbo do esquecimento aqueles que não a interessavam mais. Durante muito tempo amalgamou os projetos de identicidade nacional.

Enfrentar a toda poderosa Globo sempre foi uma atitude temerária, pois enquanto império possuía literalmente a opinião pública sobre seu controle. Nas décadas de 80 e 90 chegou a ter o dobro de audiência que o somatório de todas as outras emissoras. Foi tão poderosa que elegeu o presidente Fernando Afonso Collor de Mello, o primeiro após a ditadura militar pelo voto direto, derrotando o então temível Luís Inácio Lula da Silva.

O final da novela Amor à vida suscitou um debate nacional sobre a questão homo afetiva após a exibição do primeiro beijo gay, ensaiado, gravado, editado e ameaçado de ser exibido em novelas anteriores.

A questão é o porquê de tanta polêmica em torno de um beijo entre dois homens. Isso só denota o quanto ainda é tabu numa sociedade supostamente liberal.

Toda sociedade é idiossincrática, o Brasil não é diferente, mas está na hora de começarmos efetivamente a nos enxergar, inclusive focando nossas contradições. No Brasil usa-se fio dental  (biquíni), mas topless é proibido. Aqui, um país de 8.500 km de praia, sol o ano inteiro, pessoas não podem adentrar em certos lugares com shorts e camisetas, mas cultua-se o corpo dourado, peitos e bundas. No carnaval, valorizam-se os corpos, mas a nudez é proibida. A prostituição é legal, mas a comercialização da prostituição é crime, reclama-se de corruptos políticos, mas muita gente suborna guarda de trânsito, frauda declaração de imposto de renda, não paga IPVA, IPTU (também acho absurdo, mas deveríamos protestar), joga lixo nas ruas, rouba energia e água tratada com ligações clandestinas. Acreditamos ser ultraliberais sexualmente, mas se escandaliza com um beijo gay. 

O próprio índice de assassinatos de gays, lésbicas, trans, simpatizantes, todos os dias no país revela o nosso estado de barbárie. Assassinar pessoas por orientação, identidade sexual é tão anti-humano quanto às práticas culturais de países criticados por muitos brasileiros sob a mesma acusação de barbárie.

A questão gay não é uma concessão, é uma condição a ser respeitada pelos mais distintos segmentos sociais. Aliás, respeito é o mínimo, já que se trata de reconhecimento à diferença, avanço seria alteridade, ou seja, não apenas reconhecer que existe o outro, mas entender que existem formas afetivas distintas. 

Quanto à questão religiosa, geradora em boa parte da polêmica em torno do beijo, é presunção considerar que alguns religiosos irão entender ou mesmo aceitar algo diferente de suas crenças e dogmas, mas eles também precisam compreender que a sociedade é regida por um estado laico, portanto, na esfera jurídica-administrativa prevalecerá os estamentos fincados nos princípios da sociedade legal. Discutível? Sim, claro, afinal, o direito não é jus naturalista, é cultural, social, construído por concepções forjadas no seu tempo, mas os elementos dogmáticos não podem pautar o constitucionalismo civil, logo, criminalizar ou proibir a livre expressão do afeto não pode ser uma premissa.

Por outro lado, os religiosos também podem replicar alegando que o constitucionalismo não pode interferir nas suas formas de encarar e ver o mundo, logo, não podem ser obrigados pela força da lei a aceitarem práticas e/ou comportamentos não condicentes com suas convicções, o que está também correto, a questão é que só podem proibir práticas consideradas permissivas dentro de seus espaços de congregação, como por exemplo, as igrejas, mas não  âmbito público, ou mesmo em zonas de entretenimento, tais como: a televisão.

A diversidade religiosa e a diferença de opiniões são necessárias em qualquer sociedade, sempre existiram, mas impedir que um segmento social seja impedido de ser expressar ou manifestar ou ainda, até mesmo existir, é intolerância.

De certa forma a proporção que o beijo gay tomou denota o nível de nosso processo de convivência, entendimento e sociabilidade. Isso não seria tão polêmico em várias partes do mundo, ou se é, em tais lugares não se arvoram de serem liberais, inclusive sexualmente.

Por detrás disso tudo se esconde um grande preconceito, pois o programa Big Brother é a própria exposição pós-moderna da máquina panóptica de perda de intimidade e individualidade, uma espécie de vitrine cultuada, compartilhada por milhões de brasileiros. Então vamos lá: transar sob os edredons pode? Tomar banho quase nu pode? Beijo gay, não?

Por que Big Brother tem tanta audiência? Por que gera milhões a Rede Globo? Então a questão não é a sexualidade, mas qual sexualidade.

Eu gostaria que seguíssemos outros exemplos, como o Uruguai. Eles estão bem à nossa frente        

    


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