sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Paralela

Um fim de tarde aprazível, ainda que no começo o calor tivesse sido descomunal. Dois chopes sobre a mesa. Uma prato de calabresa ao molho de cachaça. Relembranças de um tempo não tão distante, de quando a penúria da vida era pesada pelos sonhos vindouros na esperança de que dias melhores encobrissem aqueles de dificuldades. O lugar nada agradável, cada vez mais corriqueiro com essa péssima mania de colocar televisores de alta definição com suas gigantescas telas full screen sendo um atrativo mais importante que os encontros, marcados, casuais e fortuitos, atraindo atenção e sendo ao mesmo tempo atrativo para se estar nesse lugar, sobretudo com o volume às turras, irritando pessoas que querem conversar, não assistir a novelas ou programas de fim de tarde de caráter sensacionalista. 

– Me diz, Abelardo, como vai a vida? 

– Quanto tempo, hein, Sorato? Pois é, depois daqueles tempos de penúrias muita coisa mudou. Agora administro minha própria empresa, não sou mais empregado, toco com uma certa dificuldade os negócios, mas enfiei a jaca de uma vez e me empenho o bastante, o suficiente para ocupar meu tempo e esquecer minha crise conjugal. 

– Então as coisas não vão bem no casamento?

– Não, e acho insolúvel. O tesão foi embora de vez e a vontade de tudo se ajeitar. 

– Pelo menos o trabalho ocupa um lugar importante e ocupa tua cabeça, né?

– Mais ou menos, só me sinto realizado de fato quando escrevo. Ali me escondo e me apresento ao mundo me vingando da pequenez da vida, das coisas que não deram certo e tento pela escrita reescrever uma vida que gostaria de ter vivido.

– E contigo, Sorato, como vão as coisas? 

– Te lembra quando conversávamos sobre minha vontade de escrever contos? 

– Sim...

– Me aventuro vez por outra a escrever contos e isso ocupa um espaço cada vez mais importante. A mediocridade acadêmica me irrita cada vez mais. O lugar que era por excelência da crítica ao fordismo da vida se tornou ela mesma um locis produtor de fábrica de baboseira, repetição de velhas ideias, sem oxigenação, sem transgressão, um amontoado de práticas repetitivas preocupado em engordar o currículo, de olho na produção tal e qual se montavam as peças de uma indústria de automóveis no inicio do século passado. A surdez é uma das principais características dessa nova academia; apática, distante da sociedade, autorreferenciada, cuja escrita é cada vez mais estéril. As exceções são cada vez mais exceções. Por incrível que pareça, transgredir virou démodé, antiquado.  

– Que bom, Sorato, fico feliz, mas vai uma dica sobre escrever contos. Se empenhe cada vez mais em escrever, no entanto, não espere, nem crie tanta expectativa quanto à recepção, caso contrário, vai se frustrar bastante. Não espere nem mesmo dos mais próximos e chegados que leem seus textos, muito menos que entendam sua relação com a escrita. Só quem escreve sabe o que estou falando. Eu escrevo para exorcizar minhas angústias e sei que todo escritor quer ser lido, depende disso, mas eu foco na minha vontade de escrever e dar vida a alguma ideia. Me contento com o fato de saber que alguém irá ler, quem quer que seja, em algum lugar. É como uma garrafa lançada ao mar, em algum momento alguém irá recolher... Ah!! E quanto à mediocridade da academia, faz o que eu fiz: criei uma vida paralela. Os negócios pagam minhas contas, me dão condições de me esconder durante seis dias na semana me ocupando com as coisas do cotidiano e rotineira para, no domingo pela manhã, quando me desligo do mundo e me tranco no escritório poder ser, ainda que por alguns instantes, eu mesmo.                        









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