quinta-feira, 25 de abril de 2013

Quando realidade e ficcão não são o que pareçem

Um sonho insistente, recorrente a atormentar uma mente. Uma gravata para desbravar uma bravata. Uma torrada ainda quente, um café descafeinado, uma agenda cheia pela frente. 

No carro aquele som que lembra aquele momento, na mente, a lembrança insistente do sonho. E a dureza da vida nos faz achar que encher o tanque do carro é mais real que os sonhos, que o trânsito parado, pagar as contas, acumular capital, são a máxima expressão da vida, para muitos, a única.

Platão possivelmente foi o primeiro a sistematizar a noção da existência do mundo das ideias. Para ele, o mundo cognominado como real era uma derivação do mundo sensitivo, das ideias. Daí em diante, e sobretudo após a construção da literatura diferente da história, a expressão prosaica da vida abastardou-se da via poética. 

Apareceram teorias metafísicas e sínicas acerca das noções de representação, não apenas da realidade, como também das expressões de um mundo não objetivo, que por sua vez são extensões da vida. Como a realidade palpável passou a ocupar cada vez mais a perspectiva da condução da vida, formas de elucubração, reflexão filosófica passaram a ser antítese de um mundo dito real. 

As tensões entre realidade e metafísica ganharam ares de divisão ancilar quando Descartes fundou a ciência moderna, depois corroborado por Bacon e toda a construção do mundo ocidental. Sonho e realidade, prosa e poesia, concreto e abstrato, subjetividade e objetividade, conotaram pares antitéticos como se a construção de um entendimento do mundo necessariamente tivesse que ser separada, e não dual. 

Quando a história se separou da filosofia e da literatura no século XIX, no processo de entificação da ciência histórica, as formas de concepção do mundo, corroboradas pelo embate entre Hegel e Marx acerca da metafísica e do materialismo histórico dialético em construção, se tornaram ainda mais graves quanto ao que é real e o que é imaginário, subjetivo. A ciência do século XIX, pautada no empiricismo, prometia a felicidade e a verdade, prometia o desvelamento da vida calcado apenas na tangibilidade do que a experiência sensorial e tátil poderia aferir, ou seja, mais do que nunca prosa e poesia seriam antagônicas.

Até surgir a psicanálise e nos inquietar sobre o quanto os sonhos são mais concretos do que imaginávamos. A literatura, o cinema, a poesia do século XX nos revelaram mundos, sentidos e sensações dantes nunca sentidos. O realismo fantástico e mágico, os contos, crônicas, apontaram suas flechas para o mundo dito real, objetivo e concreto desafiando-os no sentido de mostrar que a vida não se resumia ao sentido das aparências.

Edgar Morin, em Amor, Poesia, Sabedoria, aventa que prosa e poesia são linguagens distintas, porém, complementares. A prosa dá conta da metodologia, da mecânica sistemática, da pragmática; a poética, do plano simbólico, do imaginário, do sensível e não palpável.

A questão é a separação entre as duas dimensões. Necessariamente não são antitéticas. A dimensão prática, objetiva, metódica é uma dimensão da vida, qual a prosa, dentre ela, a histórica, dá conta, se atém, oferece resultados, prefigura uma instância de percepção do real. A poética, simbólica, denota o não revelado, nem por isso fictício, irreal, apenas não compreendido.

Há um elemento que aproxima Platão, Hegel e Edgar Morin: a ideia de que o que entendemos enquanto realidade é ficção e a ficção é realidade. O que se apresenta cotidianamente para nós no plano da objetividade, da realidade, são prefigurações do que existe no plano das ideias. Portanto, a ficção não é o que não existe, e sim, a mais próxima condição do que nós somos, ao passo do que se apresenta no plano do concreto é um distanciamento do que nós somos. A crueza da vida são as acumulações dos papéis sociais que assumimos, a vida não está no divã, mas no personagem literário, no cinema.

Por isso que o cinema, a literatura, a arte em geral, também expressam o que nós sentimos e precisamos o tempo todo recorrer a elas, não apenas como catarse, como válvula de escape, como também porque no fundo desconfiamos de que existe algo para além da praticidade da vida.

Os sonhos insistentes a atormentarem as mentes são o que de mais próximo sentimos. A gravata para desbravar uma bravata é uma ficção travestida no concreto da realidade a nos mostrar o quanto as duas dimensões coexistem. Ambas necessitam uma da outra, afinal, só damos conta do que sentimos, portanto de quem somos, quando pela manhã, ao comermos uma torrada quente, bebermos um café descafeinado, começamos a refletir sobre o que sonhamos na noite anterior.    

2 comentários:

  1. Henrique como faço para inscrever um projeto para o ciência e vida?

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    1. queres dizer resumo da apresentação né? não estamos recebendo projetos. escreve para ccpdarcyribeiro@gmail.com

      te aguardo

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