Por Jeanne Sousa da
Silva
INTRODUÇÃO
Adentra-se no mundo
literário de Zoé Valdés, premiada escritora cubana, nascida em Havana no ano de
1959, com a análise de A eternidade do
instante, narrativa em forma de mosaico, na qual as representações do
feminino, entrecortadas entre passado e presente, revelam sob a ótica da
crítica feminista, relações entre o gênero e os símbolos culturais.
A obra em
análise trata-se da história de uma família de chineses, separada pela forte
crise que se instalara em seu país. Li Ying, personagem protagonista, em
conseqüência da crise, emigra para Cuba. A esposa Mei Ying fica com os três
filhos Mo Ying,XueYing e Irma Cuba Ying esperando o retorno de Li.
Depois de longos anos de espera, o primogênito Mo Ying resolve ir à procura do
pai, deixando a mãe e as irmãs.
Em sua longa peregrinação Mo Ying, narrador-personagem, conhece outras
culturas, relaciona-se com mulheres, conhece a escravidão e finalmente chega em
Cuba, onde passa a se chamar Maximiliano Megía. Já idoso, resolve se aproximar
da neta a quem endereça seu caderno de memórias.
A história é dividida em duas partes, Nascer
e Vivir, a primeira contém 15
capítulos, e a segunda 21. A conexão entre os capítulos, no entanto, não se
desfaz, há uma linha tênue que conecta os sentidos. Os subtítulos dos capítulos
estão relacionados à charada sino-cubana, que apresenta 36 números, dando à
obra um tom místico.
A estrutura da narrativa está ligada a uma rede de significados que tanto
se referem à cultura chinesa quanto à cubana. O misticismo, presente nessas
culturas se faz presente na composição de quase todas as personagens. Assim
como, a tradição cultural, através das organizações sociais, revela as
representações do feminino.
Antes de iniciarmos a análise da
referida obra, vale situar o
contexto sociopolítico da China e de Cuba, no qual a obra se insere e, principalmente das implicações desse contexto no
campo literário. Isto porque, segundo a crítica Rita T. Schmidt, “A
importância, hoje, não é somente DO QUE se fala, mas, principalmente, DO COMO
se fala e DE ONDE se fala [...]” (1995, p.178).
A narrativa inicia-se em Yaan, cidade de
Sichuan na China de 1910, período em que começa a ruína econômica chinesa,
sobretudo na agricultura. Muitos dos camponeses abandonaram o campo, o que
gerou profundas mudanças, no panorama sócio-econômico e cultural desse país.
O Imperialismo capitalista imposto pelas
potências européias, subjugou os valores culturais chineses a um descrédito, as
artes em geral, perderam o valor político-econômico. O status social passa a
girar em torno do poder do capital e não mais do intelecto. Muitos artesãos e
camponeses emigraram para outros países, em busca de riqueza.
Nesse período, Cuba havia se tornado uma
república, no entanto o governo norte-americano, em 1901, tinha convencido a Assembleia Constituinte cubana a incorporar
um apêndice à Constituição da República, a Emenda Platt, pela qual se concedia
aos Estados Unidos o direito de intervir nos assuntos internos da nova
república.
É nesse contexto histórico, que se inscreve a obra em análise, de um lado
uma China decadente, sofrendo com o declínio social, econômico e cultural e do
outro Cuba vivendo uma prosperidade mascarada.
A
ETERNIDADE DO INSTANTE: MOSAICO DE REPRESENTAÇÕES, SOB AS LENTES DA CRÍTICA
FEMINISTA
Sob a ótica da
Crítica feminista, verifica-se que a obra em análise apresenta relações de
gênero marcadas pela presença significativa de símbolos culturais, instituições
econômicas e políticas, assim como, reviravoltas nos papéis das personagens − mulheres fortes
e decididas versos homens sensíveis e inexpressivos.
Ao estudar essas
relações, conforme Schmidt (2000, p.95) deve-se lembrar que
“Tanto quanto raça e classe, gênero é uma das categorias da diferença [...]
falar sobre gênero é falar sobre diferença sexual e cultural”. Sendo assim, o estudo sobre o gênero
proposto nesse artigo, perpassa os preceitos da primeira vertente da crítica
feminista, inaugurada por Kate Millet com seu Sexual Politics em 1970, que se voltava para o exame minucioso das
relações de gênero, buscando analisar as representações de personagens
femininas em textos masculinos, assim como, os tipos de temas associados à
mulher e de que forma o discurso implícito nesses textos, servia como
instrumento ideológico para a dominação social e cultural masculina.
Nas últimas décadas, no entanto, o estudo de gênero, vem apresentando
novas facções críticas, que defendem a análise do texto literário a partir do
seu contexto de produção, o que trouxe maior verossimilhança na leitura e
análise dos textos de autoria feminina, uma vez que, a composição
ficção/realidade desvela os construtos sociais que marcam tanto a visão que a
mulher tem de si, quanto à forma que concebe o outro.
Sendo assim, a leitura do texto de autoria feminina, sob as bases
conceituais da Crítica feminista, tem servido como fonte de investigação sócio-política,
cultural e literária, capaz de, segundo ZOLIN (2005, p. 182):
“[...] num
processo de desnudamento que visa despertar o senso crítico e promover mudanças
de mentalidades, ou, por outro lado, divulgar posturas críticas por parte dos (as)
escritores (as) em relação às convenções sociais que, historicamente, têm
aprisionado a mulher e tolhido seus movimentos”
Diante do exposto, elege-se para nortear este artigo, a perspectiva da
crítica feminista contemporânea, sob o enfoque político-cultural, buscando
enfatizar a cultura, relatar mudanças sociais, condições econômicas e
transformações relacionadas ao equilíbrio de força entre os sexos, pois segundo
Zolin (2005, p.191) se pretende “desnudar os fundamentos culturais das
construções de gênero.”
Nessa perspectiva, o pensamento de Bourdieu (1998) também traz grandes
contribuições, sobretudo pelo trabalho que realiza sobre a construção social
dos corpos, mostrando de que forma o comportamento prático de homens e mulheres
está condicionado socialmente, por valores simbólicos concebidos pela sociedade
patriarcal.
No estudo das relações de gênero, adota-se o posicionamento de Lauretis
e Stoller (1994; 1990) por entenderem o gênero como uma construção social, uma
representação da realidade material.
Na narrativa de Zoé Valdés, nota-se certo inconformismo, um forte desejo
de desconstruir paradigmas na dicotomia homem/mulher, propõe igualdade de
sentimentos e comportamentos, superação dos bornes sociais. Por isso, a escrita
de Zoé não está ao lado ou à margem, mas sobre o texto masculino, utilizando-o
como suporte para a sua produção, que ora reflete em si, ora no outro. Diante
disso, vale citar Zilda de Oliveira Freitas* ao dizer que:
“Distanciando-se
da identidade pré-fabricada no espelho do homem é que melhor a mulher se vê.
Para além do mero mimetismo masculino.”
A Eternidade do instante: NASCER
Em A Eternidade do
instante, Zoé Valdés constrói um verdadeiro mosaico de representação do
feminino, no qual os papéis sociais exercidos por cada personagem, a mãe, a
filha, a esposa e a amante, delimitam o universo de atuação da mulher, assim
como, reproduzem o imaginário androcêntrico – no caso, desta obra, em relação à
família e o Estado.
Vale ressaltar, ainda, que tais representações também são
construídas a partir das personagens masculinas, que por vezes invertem seus
papéis, alterando a lógica da norma patriarcal.
Na narração, as relações de gênero apresentam homens provedores
do lar, sábios, corajosos, mas inexpressivos e a mulheres fortes, sábias,
emancipadas sexualmente, no entanto presas às tradições culturais.
A personagem Li Ying, uma das mais intrigantes, é
apresentada logo no início da obra, Jovem ator e cantor de ópera, que desde
seus cinco anos fora educado de forma rígida, por seus pais e monges, desenvolvendo
habilidades de canto e dança da poesia antiga. No teatro em que encenava
interpreta uma imperatriz, “uma mulher
desejosa de ser pervertida” [...] e a dan
na Ópera da Serpente Branca, “mulher,
cujo nome era Serpente Branca, um ser feminino imortal que se transforma em garota
[...]”. (VALDÉS. A Eternidade do instante, 2012, p.15).
Neste
trecho, percebe-se que a autora envereda pela ficção da ficção, para representar,
através da personagem masculina Li Ying, o gênero feminino. Essa estratégia
narrativa pode ser entendida como uma metáfora da diferença entre gênero e sexo.
Li Ying é homem, no entanto transforma-se completamente ao interpretar seus
papéis, adquirindo o gênero feminino. O homem toma corpo e voz de mulher, “Ah, seu corpo sofria noite após noite uma
transformação extraordinária, cada vez mais perfeita, já não era mais ele. Não
era mais Li Ying.” (Ibid p.18)
Fora dos
palcos Li Ying é um jovem muito respeitado e venerado. Na cidade de Burgo todos
o admiravam e diziam: “Tal prodígio não
poderia vir de outro lugar que não fosse diretamente de uma energia superior [...]
enviada pelo Iluminado, o doce e venerado Buda” (Ibid.p.17).
A
narrativa vai delineando o conceito de gênero, baseado numa construção
sócio-cultural. Na ópera, Li Ying, apesar do traje, da voz e dos gestos, não
deixa de ser homem. No entanto, durante sua atuação incorpora toda a sensibilidade,
sensualidade e feminilidade, mesmo que estereotipada, para representar o gênero
feminino. Essa construção, no entanto, só é possível, porque as instituições
sócio-culturais inerentes desse contexto, assim a permitem.
Em outro
trecho, a autora, numa narração sinestésica, descreve as sensações de Li Ying
ao se apaixonar pela primeira vez.
“[...] totalmente desconcentrado
se seu papel de grande dama caprichosa se inquietou diante dos efeitos que
provocava em seu íntimo a contemplação da beldade que passar pela frente do
teatro, Cócegas leves e duráveis o invadiram entre o ventre e a virilha; aquilo
se chamava desassossego, comichão.” (Ibid, p.19).
Ao empregar
termos como ventre, comichão, a
autora transgride aos padrões sensoriais masculinos, que numa sociedade
patriarcal, geralmente são representados como símbolos de força e
insensibilidade.
O narrador
passa então a descrever Mei. Mulher por quem Li Ying se apaixona.
“O que mais gostava na vida era
olhar para cima e contemplar o céu” (...) Preferia o inverno ao verão (...)
acabara de completar dezessete anos e ocupava a maior parte do tempo com
leitura (...) Lia deste os três anos, passou a escrever a partir dos três anos
e meio. Seu pai a ensinara, instruindo-a com comentários sobre Os poemas
canônicos ou o Livro de poemas, a mais antiga antologia chinesa (...). Órfã de mãe,
já que esta falecera no parto (...) Mei
nunca experimentara a dor e o padecimento de sua perda (...) seu pai suprira a
ausência: o escrivão mimava demais a filha única.” (Ibid p.22)
Nesta
descrição, a autora traça o perfil de Mei, caracterizando-a como uma mulher jovem,
serena, introspectiva e intelectual. Em outros trechos da narração, a autora
continua dando destaque a inteligência de Mei, como no trecho em que Sr. Xuang
fala sobre a filha “Se ela tivesse
nascido homem não seria tão inteligente” [...] “Mas, se tivesse nascido homem, eu teria vivido tranqüilo. Minha filha
jamais poderá ser respeitada como profeta...” (Ibid p.23).
Vale
ressaltar, que a caracterização da personagem, enquanto mulher intelectual, não
condiz com a realidade da mulher chinesa do início do século XX, que em sua
grande maioria, segundo BRAGA (1991) nem
se quer era alfabetizada. Zoé, portanto, elege a exceção para desconstruir a
imagem da maioria das mulheres chinesas, perpetuada pela submissão, imposta por
uma sociedade historicamente marcada pelo patriarcalismo.
Durante a
narração nota-se que a intelectualidade vai surgindo como indicador de status
cultural e social, que estando ligado ao labor artístico,acrescenta às
personagens Li e Mei certa superioridade cultural, colocando-os no mesmo
patamar. A função social exercida por cada personagem na rede de simbologias da
cultura chinesa molda as relações de gênero e de poder.
Li e Mei
casam-se e durante o ato sexual a jovem mostra-se emancipada, domina a relação
e se deixa dominar. Seguindo um dos desenhos eróticos de “Ritual sensual da
primavera”, retirado de um livro que roubara de seu pai, Mei surpreende Li “Ninguém nunca o divertira tanto quanto
Mei e, da mesma forma, ninguém lhe ensinara tanto”. (Ibid p.36).
Segundo FOUCALT
(1978, p.59) na cultura oriental o sexo é uma “busca por métodos por meio dos
quais se poderá intensificar o prazer sexual “ - arte erótica.
Arte esta
que não privilegia nenhuma das partes, o sexo aflora como um canto, uma dança,
no ritmo dos corpos. Mei chega ao orgasmo primeiro “como uma gata no cio, com os olhos revirados, gemeu num orgasmo
duradouro. Li Ying, por sua vez“
conseguiu se segurar e renunciar a alcançar o auge da ejaculação; reunida toda ternura
do universo, depositou um beijo nos lábios avermelhados de sua esposa. ”(Ibid
p.39)
A relação
sexual não se mostra como uma relação de dominação social, a autora contraria a
norma patriarcal, na qual como teoriza BOURDIEU (1998, p.31) “está construída através do princípio de
divisão fundamental entre o masculino, ativo, e o feminino passivo.”
Nessa
relação homem não é dominador e nem dominado. O sexo assim, como qualquer outra
arte, deve ser apreciado, cultuado, pois faz parte da tradição cultural. A
mulher nesse momento tem voz e autoridade sobre seu corpo.
Após o
coito, Li e Mei especulam sobre o sexo da criança que acabaram de conceber – “Será menino – previu ela, orgulhosa”. O
marido complacente e feliz com a excitante premonição completa “Será um menino forte, valente, aventureiro
– Afirmou Li Ying”. (Ibid p.41)
Percebe-se
que a ideologia patriarcal está diretamente relacionada com a tradição cultural
e isso logo vem à tona. As personagens são conscientes de seus papéis sociais,
enquanto mantenedores e reprodutores da tradição. O primogênito representa na
cultura chinesa, o herdeiro maior, dando à família prestígio social.
A autora vai construindo suas personagens a
partir da representação cultural e social da mulher, por meio de um conjunto de
representações míticas e arquetípicas, as quais confinam o espaço do feminino à
dimensão da imagem em seus múltiplos significados. Da mesma forma, com que
situa as personagens numa sociedade androcêntrica, na qual os papéis sociais
são culturalmente pré-definidos.
Dessa forma, Mei Ying, apesar de ser uma
mulher inteligente, habilidosa artisticamente, pois além de copiladora era
artista plástica e artesã, mostra-se presa a condicionamentos sociais e
culturais, nos quais foi submetida pela ideologia paterna.
No quinto capítulo intitulado O canto do
idealista, nasce o primogênito Mo Ying “ (...)
Até aos sete anos foi o pequeno rei da casa, fazia rir a todos com seu caráter
firme e decidido ou com suas frases atrevidas. “ (Ibid p.45)
Depois nasceua menina Xue Ying e com ela a
decadência da família, pois foi no momento que o Sr. Ying teve que vender o teatro. Li Ying perde o emprego. Mei diante desses
acontecimentos diz: " - Não
desanime, Li Ying, você sempre será o melhor. Três gerações o recordarão por
seu canto, porque é imortal.” ( Ibid p.48).
Nesse capítulo, a autora apresenta o
comportamento de Mei, enquanto esposa e mãe, e como tal, esta personagem
mostra-se devota do marido e protetora dos filhos, ao seja, age sob efeito da
dominação simbólica masculina, na qual os
construtos sociais androcêntricos, naturalmente, a submetem.
O contexto histórico da ficção remete à
crise econômica da China de 1910 e à gripe, doença que mata centenas de
chineses, atingem diretamente a família de Li Ying. Venderam tudo que tinham,
os pais de Mei e Li morrem, “ Meu pai e o
dela – apontou para sua esposa – morreram por causa de tanta ignomínia, que
gripe o quê! Adoeceram de tristeza, ao se verem convertidos em testemunhas da
extinção de uma cultura...” ( Ibid p. 59)
O filho mais velho Mo Ying que havia sido
mandado para o mosteiro, agora com doze anos, recolhi-se nas montanhas sob os
ensinamentos do mestre Sr. Meng Ting, para iniciá-lo nos estudos de meditação e
espiritualidade.
Tanto Li quanto Mei preocupam-se com a
educação de Mo, no entanto, não esboçam a mesma preocupação com a educação das
filhas Xue e Irma Cuba. Nessa construção, a escrita de Zoé desvela que a
organização familiar chinesa, enquanto instituição social reproduz a dominação
e superioridade masculina, conduzindo à mulher a uma inferioridade, que segundo
BOURDIEU ( 1998, p.49) “o habitus de
homens e mulheres está condicionado a perceber o mundo somente a partir das
categorias da percepção que esta ordem simbólica imputa”
Ao retornar para casa Mo Ying, agora com 16
anos. Havia se tornado médico, sábio, poeta e profeta, mas para Li Ying “ Nada
disso vale mais “ (p.60). Em tempos de crise, a arte, a espiritualidade e a
cultura não tinham nenhum valor financeiro e nem cultural, a China fora
invadida por outras culturas. Diante disso, Li Ying toma a decisão de partir:
“ – Só espero que sua mãe dê a luz e que
a criança complete alguns meses. Quero partir para longe, para Cuba, encontrar-me
com meu primo Weng Bu Tah. Lá trabalharei e enviarei dinheiro, aqui não me
resta nada útil para fazer a não ser a autodestruição. “ (Ibid p. 59)
A autora mostra o inconformismo de Li Ying diante
de sua realidade financeira. Pois, como provedor do lar, não aceita sua
condição. Revolta-se diante dos novos rumos de seu país, rechaçando o
pensamento e à cultura estrangeira.
Mei não questiona e nem contraria a decisão
do marido. E após o nascimento de Irma Cuba, Li Ying parte para Cuba, onde o
primo Weng Bu Tah ocupava liderança política.
O comportamento da mulher oriental
apresentado pela autora, expõe a
submissão desta, ao sistema tradicional vigente, sob o comando
masculino. Esta submissão é construída com base em aspectos culturais, sociais,
econômicos e ideológicos.
Os papéis sociais exercidos por Mei e Li
revelam a organização social da época, homens provedores do lar e mulheres
dedicadas às funções domésticas e maternas.
Com a partida de Li Ying as mulheres da
família Mei, Xue e Irma Cuba Ying apresentam sentimentos que mesclam esperança,
revolta, saudade, dor e desprezo. Cada uma elege uma forma de se abstrair
daquela realidade. Mei Ying quase não fala, dedica seus dias ao artesanato,
finge uma alegria artificial para não contaminar seus filhos com sua tristeza “(...) ela finge ser feliz para não nos
deixar infelizes” (p. 72). Xue Ying a filha do meio, que fora descrita por
Li como “uma adolescente cheia de
virtudes, mas às vezes é imprevisível em suas ambições. A espontaneidade domina
a maioria de seus atos, não será bom para ela”. (Ibid p. 60).
Xue não se compadece do mesmo sentimento da
mãe e do irmão em relação a partida do pai, ao contrário condena sua atitude.
“Papai se envergonhou de não ter as
condições necessárias para um bom sustento de nosso lar, teve pena e vergonha
de não conseguir manter nossa família. Em vez de trabalhar junto de mamãe e
seus filhos, preferiu alegar que partiria para longe em busca de fortuna.
Talvez você tenha acreditado, eu só considero sua decisão um pretexto vulgar,
escolheu a vida fácil. Ele se safou do compromisso familiar e deixou mamãe com
todo peso em cima das costas.” (Ibid p.71)
Mo Ying em relação ao comportamento de Xue,
defende o pai e condena veemente a atitude da irmã“_ Você é mais que injusta! É impiedosa! Como pode guardar tanto rancor
de nosso pai? (...) É um grande artista e todos os artistas sofrem até o final
de suas vidas”. (Ibid p.71)
Mas
a garota não se intimida e contesta: “_E
mamãe não é? Mamãe também é uma grande artista. Mas, claro, a quem importa esse
detalhe, não? Ela é mulher. E ninguém se importa com as mulheres” (Ibid p.72)
Nessa passagem, é notório o desejo da
autora em apontar a subordinação da mulher em relação ao homem, na sociedade
chinesa da época. A reação das personagens mostra a existência de uma hierarquia
de valores e condutas, impostas por tal sociedade. A transgressão e o
incorformismo de Xue, não alteram em nada o destino dela ou de sua família. Ela
não se caracteriza como uma mulher-sujeito, que segundo ZOLIN (2005, p.183) “é
marcada pela insubordinação aos referidos paradigmas, por seu poder de decisão,
dominação e imposição”.
Xue, portanto é uma mulher-objeto, pois
mesmo consciente da dominação patriarcal, continua submissa, resignada. Sua voz
não ecoa. A mesma em sinal de revolta ou de desprezo pela atitude do pai ou
pela condição da mãe resolve tapar os olhos e assim, se confinar na mais
completa escuridão.
Irma Cuba, filha caçula, era ainda muito
criança para expressar qualquer tipo de posicionamento em relação à emigração
do pai, mas sofria com sua ausência “ _
Ai, mamãe quero ver o papai, quero conhecer meu papai! – a menina berrava num
ataque de choro.” ( Ibid p.79). Como reação passa a sentir fortes dores nos
ouvidos, desejava ficar surda, pois todos os barulhos a incomodavam, menos o
canto do pai. Fica surda.
A reação de cada uma das personagens remete
aos três macacos sábios da cultura chinesa, Mizaru, que tapa os ouvidos para
não ouvir o mal, Kikazaru, para não ver o mal e Iwazaru para não falar o mal.
Eles representam os segredos da sabedoria chinesa.
Novamente constata-se o forte apego às
questões culturais na construção do comportamento das personagens. Que mesmo
conscientes de sua realidade, não transgridem as normas sociais estabelecidas,
ao contrário se abstraem para não perturbar a tal ordem. Diante dessas
inferências destaca-se o pensamento de STOLLER (1993), ao frisar que: “
“Masculinidade e feminilidade referem-se à identidade
de gênero e comportam aspectos biológicos e psicológicos. Sem dúvida, a
influência da cultura e das ideologias que a permeiam devem ser levadas em
conta”.
Diante dos acontecimentos Mo Ying resolve
ir à procura do pai e deixa o velho mestre Meng Tingcomo tutor da mãe e das
irmãs.
A Eternidade do
instante - VIVER
Na segunda parte do romance, intitulada Viver , Mo Ying ao chegar no México passa
a se chamar Maximiliano Megía e depois de longos anos, vivendo em Cuba, já um
velho centenário, dedica horas de seus dias escrevendo, em seu caderno de
lembranças, aventuras e relações
amorosas que teve ao partir da China em busca do pai Li Ying.
A narração segue, entrecortada, como se
obedecesse as falhas da memória do velho chinês. Nesse mosaico de lembranças,
Mo Ying entra em contato com mulheres de diferentes culturas. No entanto, analisam-se
neste artigo, as de maior representatividade, no que concerne ao estudo das
relações de gênero.
Nessa segunda parte do romance, a autora
constrói uma narrativa memorialística, na qual Mo Ying é o narrador-personagem.
Através do registro das memórias de Mo Ying, a autora relata as relações
amorosas que este personagem vive antes de casar com Bárbara Buttler, com quem
teve cinco filhos.
A primeira relação amorosa acontece numa
pequena localidade de Hexi, em Yunán, com a adolescente Sueño Azul. Uma garota
subversiva, para os padrões sociais da época, decidida e bem resolvida em relação
ao amor e ao sexo.
A inverossimilhança dessa personagem, em
relação à identidade feminina da época é notória. A narração oscila entre
realidade e sonho. Sueño azul é a representação da mulher-sujeito, ela aproxima-se
de Mo e direciona a conversa para uma intimidade que até então não existia. “_ Como você gosta do corpo feminino?
Exuberante ou magro? Mo Ying não soube o que responder a semelhante pergunta,
muito ousada para uma adolescente”.( Ibid p.136)
A relação de Mo e Sueño Azul é marcada pela
autora por elementos como a estranheza, o surpreendente e o inesperado, ou
seja, pelo exotismo tipicamente oriental.
Sueño Azul transgride ao condicionamento
patriarcal, não deseja um homem para casar-se, sabe que sua relação com Mo será
puramente sexual. Faz-se mulher-sujeito. “-
Sabe Mo Ying? Minha irmã vai se casar amanhã, apaixonada por seu noivo, claro.
É o correto, acho que sim. Eu não me casarei nuna, prefiro ser concubina ou
cortesã” ( Ibid p.137)
Mo Ying diante do comportamento de Sueño
Azul mostra-se surpreso, confuso e intimidado. A jovem o dominou completamente “Sueño Azul avançou para ele [...] Ela
levantou a veste do homem [...] Agarrou o pênis e o deslizou entre as coxas
[...] fizeram amor toda a noite. (Ibid p.138)
Mo Ying continua sua jornada e depois de
fugir de uma caravana de nômades violentos, é capturado por um grupo de
caçadores e transformado em escravo.
Ao chegar a Campeche é comprado pelo Sr.
Dubosc, a pedido de sua filha Eva “ – Aquele
– apontou para Mo Ying _, o terceiro da esquerda para a direita, comprei-o pai.
Preciso de um servente. (p.242). Assim torna-se escravo e depois amante de
Eva Dubosc, mulher que o batizou com o
nome de Maximiliano Megía. “ Desde a
noite em que chegaram à fazenda, a curiosa francesinha se fixou em Mo [...] Eva
Dubosc se enamorou dele [...] se apaixonou até os ossos por Maximiliano e se
atreveu a confessar isso” (Ibid p.184)
Nessa relação, vale destacar que, os
valores patriarcais vigentes se sobrepõem ao sentimento de Eva, que mesmo
apaixonada por Maximiliano, não reage contra o pai, não se corrompe pelo
sentimentalismo, não contesta seu destino, apenas silencia. Aceita a imposição
do pai, que “[...] não podia consentir;
sua filha predileta com um escravo!” ( Ibid p.184)
Diante dos comportamentos das personagens
vale citar LAURETIS (1994, P. 215) ao dizer que:
“A categorização masculino/feminino, excludente,
manipula as relações sociais, que não refletem, mas constroem a realidade. “ Os
homens e as mulheres não só se posicionam diferentemente nessas relações, mas –
e esse é um ponto importante – as mulheres são diferentemente afetadas nos
diferentes conjuntos”
A última relação amorosa de Maximiliano
acontece com Bárbara Buthler, “uma
irlandesa emigrada com seus pais açougueiros e irmãs solteiras” (Ibid p.176).
Nessa passagem à descrição é mais minuciosa, a relação vai sendo construída, à
medida que os dias passam e a intimidade entre as personagens evolui.
“Na primeira vez que falou com Bárbara, ela estava
enfiada nos lençóis, [...] padecia de uma febre muito alta [...]. “Perguntou
como se sentia, ela respondeu que muito mal e aí terminou o diálogo; isso foi
simplesmente tudo” (p. 208)
Durante dias não se afastou de seu lado,[...] o mal
estar cedeu, e paciente e médico iniciaram uma respeitosa relação; começaram
jogando cartas, depois ele ensinou algumas regras do mahjong, ou mayón, e ela
rolava de ir, divertindo-se muito na companhia dele.
Depois de curar a paciente, Maximiliano Megía voltou
a seus costumes habituais, enviou uma carta recomendando repouso e tentou não
pensar de modo obsessivo nela.” ( Ibid p.208)
Enquanto para Maximiliano a relação se
fixara em médico/paciente, para Bárbara era o começo de uma irresistível
paixão.“ Mas, as cócegas e a coceira
entre o umbigo e o púbis atormentavam Bárbara Buttler, derretida diante da
imagem do chinês.” (Ibid p.208)
A autora relata as sensações de Bárbara,
igualmente como fizera ao descrever as de Li Ying, pai de Mo Yong, ao se sentir
excitado pela primeira vez. Nessa co-relação de sensações, Zoé propõe igualdade
entre os sexos, homem/mulher reagem da mesma forma quando esboçam desejo carnal.
Diante disso, a mulher-sujeito surge com
toda força na narrativa.
“ – Que foi?
Se apaixonou por esse chinês? Sua irmã Nina não podia acreditar.
_ Esse chinês, como você o chama, é advogado, médico
e gosto muito dele.
_ Como pode gostar de um chinês? Além disso, dizem
que os chinese trazem azar. Você nunca ouviu esse ditado de que “fulano tem um
chinês por trás”, de alguém que está muito chateado? – insistiu Nina.
_ Gosto de Maximiliano, vou casar com ele e ponto –
espetou Bárbara.
_ Casar com um chinês? Será para que papai o mate.
Fará de papai um desgraçado.”( Ibid p.209)
O comportamento de Bárbara é marcado pela
insubordinação, inconformismo e pelo poder de decisão que esta tem sobre seu
destino. A mulher-sujeito é construída por Zoé de forma intensa, pois Bárbara
não só foge do padrão estabelecido pela sociedade patriarcal, como impõe seu
desejo ao pai, conduzindo tanto sua vida, quanto a de Mo Ying, que
inexpressivo, é dominado pelo desejo de Bárbara.
-“Ela quer casar o mais rápido possível. Estaria
disposto?
- Não tinha
pensado nisso.
- Gosta ou não
gosta da minha filha?
- Sim, senhor, mas tenho responsabilidades econômicas
com minha mãe, minhas irmãs; senhor poderá supor que para mim seria difícil
assumir...
- Não me importa, é por isso que trabalha para mim,
para ganhar dinheiro, e ganhará ainda mais. A única coisa que quero é paz no
meu lar. ( Ibid p. 210)
Bárbara transgride a ordem social e a
autoridade do pai, enquanto representante da sociedade patriarcal, na
instituição família. Assim como, contraria os condicionamentos sociais, elegendo
a profissão como fator preponderante de realização pessoal, abandonando o
esposo e os filhos. A autora propõe o desnudamento dos estereótipos construídos
sobre a mulher mãe e esposa.
“ Apesar disso, sua paixão durou o mesmo
que um merengue na porta de um colégio: alguns meses depois que o quinto filho
viera ao mundo. Bárbara topou com uma revistas de famosos em que vários
testemunhos confirmavam a moda das ruivas e, sem pensar duas vezes, determinou
que precisava se realizar como pessoa, triunfar como artista; então foi picada
pelo bichinho da artista, mudou da água para o vinho [...]” (Ibid p.213)
A reação de Maximiliano Megía diante da
partida de Bárbara também revela uma desconstrução da representação do
masculino no sistema de gênero que imputa sobre este, estereótipos de poder e
dominação.
Durante a narração não se verifica nenhum
comentário negativo em relação à partida de Bárbara, nem dos filhos, nem do
próprio Maximiliano, que ao contrário e como forma de revolta, se entrega ao
mais completo silêncio, assim como fizera sua mãe, quando seu pai, Li Ying
partira.
A inexpressividade, a serenidade, o
fracasso, subordinação e a falta de voz fazem de Maximiliano Megía um homem transgressor
das normas patriarcais, que impõem ao comportamento masculino uma conduta de dominação
em relação ao feminino.
A autora retira de
Maximiliano Megía quase todos os atributos sociais que são associados a ele,
enquanto homem, concedendo somente a virilidade, atributo este representado
através da descrição memorialística deste.
Sendo assim,
verifica-se que, nas relações sexuais registradas, através das lembranças de
Maximiliano, as personagens femininas apresentam autonomia e posse sobre seu
corpo e sobre seus desejos. Não há registro de imposições, censuras ou
proibições entre Mo Ying e suas amantes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A mulher, no decorrer da
história, cultivou o silêncio e a submissão ao sistema tradicional vigente, sob
o comando masculino. As justificativas para tal comportamento são variadas e as
análises partem das diversas influências presentes nessa relação social tão
complexa entre homem e mulher, construída com base em aspectos culturais,
comportamentais, econômicos ou ideológicos, entre outros.
Em A
Eternidade do instante, Zoé Valdés lança seu olhar sobre a mulher oriental,
marcada por sua subordinação e obediência ao pensamento androcêntrico. Uma
mulher que, limitada pela cultura chinesa, é conduzida a reproduzir e perpetuar
a dominação masculina, entendendo-a como um processo natural e inquestionável.
A autora, então adentra no exótico, no misticismo
e nas tradições culturais chinesas, concebendo-as como construções simbólicas,
capazes de relevar as organizações sociais, no que concerne às representações
do masculino e do feminino.
Vale destacar, que além das questões de
gênero, verificou-se também que na escrita dessa cubana, há um forte
engajamento sócio-político. No entanto, esse aspecto, não é o foco central da
obra. Os fatores externos, relacionados ao contexto político da China, são
geradores de conflito, capazes de alterar o enredo da narrativa, como foi o
caso da emigração da personagem de Li Ying. Contudo, às vezes, tais fatores apenas
surgem como pano de fundo, para situar a trama politicamente e historicamente.
Logo na primeira parte da obra – NASCER, o
romance construído através de uma grande força poética, notoriamente, focaliza
na relação homem/mulher, na qual a autora propõe reflexões acerca de seus papéis
sociais, assim como, preconiza sobre a influência da cultura na formação do
gênero.
A relação de gênero, nesse sentido, é o
resultado de um processo de construção que se inicia nas bases das instituições
sociais e que, uma vez concebidos, passam a representar modelos, hábitos,
costumes, que em sua grande maioria, são resguardados pelo poder simbólico,
servindo como elemento de dominação de um gênero sobre outro.
Na segunda parte da obra – VIVER, Zoé elege
o discurso memorialístico, no qual cria uma escrita de registro, aventuras,
lugares, datas, sonhos e relações amorosas, que a permite construir o
narrador-personagem Maximiliano Megía de dentro para fora, pois é através das
recordações desse personagem-narrador, que Zoé encontra liberdade para
representar o outro e sua relação com o feminino.
A autora, portanto enaltece o gênero como
uma construção cultural, assim como define Scott (1990, p. 5): “toda e qualquer construção social,
simbólica, culturalmente relativa, da masculinidade e da feminilidade. Ele
define-se em oposição ao sexo, que se refere à identidade biológica dos
indivíduos.” Sendo assim, constrói as relações de gênero, sobretudo na
primeira parte da obra – NASCER, a partir de estereótipos e símbolos culturais
enraizados nas tradições e que se reproduzem um imaginário androcêntrico
perpetuado através dos construtos sociais.
REFERÊNCIAS
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Teoria Literária: Abordagens históricas e tendências contemporâneas. .Maringá:
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Visitada em: 25/12/2012