Na feirinha da Praia Grande, dia 12 de abril, cidade de São
Luís, centro histórico, espaço boêmio e nostálgico, comemoramos o aniversário
da “incauta”, maravilhosa salve-salve, minha amiga Mariana Sulidade, na
companhia de pessoas não menos fantásticas. Ao chegar à mesa, deparei-me com
uma torta de chocolate recheada de umas dúzias de cervejas, bom papo, noite
enluarada. Não tardou para o assunto em questão passar a ser gastronomia.
Foi então que lancei o desafio: marcaremos
uma data específica, num lugar específico e cada um levará um prato especial,
ou melhor, levaremos os ingredientes e todos participarão do
banquete dionisíaco. Enquanto isso, o notebook ficará ligado, acessado a
este blog e a quantas mãos quiserem poderão escrever qualquer uma de suas
experiencias gastronômicas, inclusive esta que se realizará no momento na
tessitura da crônica. Então, lancei um segundo desafio: escrever uma crônica
sobre a memória gastronômica da cidade de São Luís. Tantos quantos lerem este
blog podem mandar suas experiências que terei o maior prazer em publicar
os recônditos especiais da gastronomia de São Luís.
Enquanto esses desafios não se cumprem, comecei a
me quedar sobre a relação entre comida, prazer, poder, sinestesia. Dei-me conta
e também a partir do comentário do Acrísio, que estava à mesa e
ofereceu a casa dele para o banquete, que a relação com a comida é também uma
histórica luta pela sobrevivência, vide que neste exato instante 1/3 da
população global simplesmente passa fome.
A relação com a comida passou da condição de mera
sobrevivência, momento que éramos meros hominídeos, para uma
situação de status social,
"requinte", poder e prazer sinestésico.
Antes do surgimento do crack, o
maior prazer catalogado pela biologia era o de comer. Isso deve-se à noção de
saciedade que começa pelas glândulas salivares e imediatamente é transportada
até o cérebro, sem olvidar claro da imensa rede, tessitura neurológica que
os peptídeos estabelecem pela memória celular que os alimentos
carregam. Na verdade, são os peptídeos que possuem a memória dos
alimentos e o prazer inter-relacionados a essa sensação.
Depois, veio a passagem da comida como mera necessidade
biológica para uma configuração gastronômica. Gastronomia e comida não são
a mesma coisa, embora a primeira só exista em decorrência da segunda.
A gastronomia é o artefato cultural da comida.
A panela de barro faz parte do aparelho digestivo. Se não
fosse ela, até hoje teríamos uma cabeça gigante, uma dentição maior
que a de hoje e caninos mais protuberantes, afinal, dentes grandes eram
necessários para a trituração dos alimentos; com a panela de barro os dentes
grandes diminuíram, sumindo alguns, e o apêndice, outrora reserva de
gordura, só serve hoje para uma apendicite.
Depois vieram as viagens para as Índias em busca
das chamadas especiarias, temperos como cravo, canela, alecrim, etc. O Europeu
singrava os mares para temperar sua comida. Logo nasceria a boa mesa. A
aristocracia como forma de se notabilizar diferente da burguesia
"reinventa" a etiqueta criando alguns talheres, um ritual para
humilhar os novos ricos que tinham dinheiro, mas não sabiam se comportar à
mesa. Detalhe: antes do século XVI, a mesma aristocracia que tirava troça dos
burgueses por não saberem “comer decentemente”, arrotava e flatulava como
sinônimos de que haviam gostado dos pratos. Quanto maiores os arrotos e
flatulências, maior a apreciação da comida.
Eu sei que “etiqueta” é uma criação aristocrática, e que
comer “bem” é sinônimo de uma relação também de poder, mas não posso negar que
determinadas comidas estabelecem conosco uma memória sentimental, afetiva, com
sabores e gostos, sobretudo com lugares. Eu não me engrandeço por ter tido a
oportunidade de ter viajado e experimentado alguns pratos que guardo
afetivamente, eu quero que todos possam ter suas experiências gastronômicas.
Vez por outra me pego lembrando de lugares e sabores. Agora
mesmo quando escrevo esta crônica, um filme me passa pela cabeça de comidas que
quero algum dia voltar a sorver. Não vou falar do Maranhão, isso vai ficar para
a experiência gastronômica na próxima crônica; vou discorrer sobre
alguns pratos que me marcaram. Sou como Sêneca, eu penso com os pés. Todas
as vezes que viajo, uma das coisas que faço é degustar pratos locais, há uma
antropologia em cada prato.
No Piauí, lembro-me de um bode assado na Serra da Capivara,
próximo do sítio arqueológico. Ninguém faz bode como os piauienses.
Em Belém, um cozido de filhote de encher a boca ao lado da casa das
11 janelas. Em Salvador, um sarapatéu bem próximo de onde foram filmadas
as cenas finais do Pagador de Promessas, perto das escadarias. Não me lembro da
dona do restaurante, mas o sarapatéu é impagável.
Em Sampa, no restaurante do “Bahia”, ao lado do estádio do
Canindé, iguarias da culinária nordestina como poucas vezes vi. Tem também as
famosas cantinas italianas com pizzas finíssimas e mil sabores, para
deixar qualquer italiano furioso... Tudo bem... os italianos “roubaram” a massa
dos chineses; os paulistas, a pizza dos italianos...
No Rio de Janeiro, no restaurante da Alerte, próximo à
praça Afonso Pena, a melhor empada de camarão do mundo. Tem também no bar do
Alemão em Santa Tereza um caldinho de feijão de levantar qualquer defunto.
Perto da Rua Sacadura Cabral, tainhas fritas com pitadas de limão de encher os
olhos, não o estômago, são muito pequenas. Em Porto Alegre, um fondue de queijo que em noites de frio
calham muito bem.
Em Buenos Aires, os cafés que são ponto de encontro para
leitura de jornal, falar mal dos políticos e reclamar da vida, um alfajor no
Havana café, ou no Tortoni são o que há. A carne, que me desculpem os gaúchos,
com pouquíssimo sal são sua grande especialidade; macias, suculentas,
não se comparam a nada que já comi. No bairro de La Boca, bem em frente ao
estádio da Bombonera, uma pastelaria do Giovane, argentino pançudo, boa cepa,
alegre, com pastéis suculentos e leguminosos. Logo na entrada um aviso: “aqui
não se aceita falar mal de Maradona”. La
Grand Pocha, nome da pastelaria, é uma homenagem à sua mulher, uma negra
brasileira com uma foto tomando conta da parede em frente ao balcão.
Em Montevidéu, no mercado central,
lugar lindíssimo, uma boa parrilhada, mas o melhor mesmo é pedir um cerdo
com sobremesa de torta de maçã. Guardo uma lembrança inusitada
de Montevidéu: andar de madrugada a 7 graus abaixo de zero sozinho, cruzando
todo o centro histórico à procura de um bom café. Quando o encontrei, senti
toda a essência da cafeína descendo pela garganta.
Em Santiago, no mercado central, cheiro de Oceano Pacífico,
comidas exóticas, monstros marinhos, um salmão gigantesco não me sai da cabeça.
É um dos melhores lugares de Santiago, além da casa de Pablo Neruda.
Em Lima, no Peru, aquele Ceviche apimentado me
atormenta. Prato simples: cebola, uma pimenta endiabrada e um peixe. Ai, ai,
ai!!!! Perto do Museu da Nação, lugar emblemático, memória do passado inca
dos peruanos e da construção da memória anti-Sendero Luminoso, uma evocação
direta ao “heroísmo” de Fujimori, tempos de guerra civil recente, ferida mais
que aberta, tem um restaurante que serve especificamente pratos criollos, comida “tipica
peruana”. Não me lembro do nome de nenhum prato, mas
eram saborosíssimos. Em Barranco, distrito onde Mario Vargas Llosa
ambientou La cuidad e los
Perros, e também Chabuca
Granda compôs Prenda Minha e Fina Estampa, um pisco notável,
além de pastelarias servindo uma massa especial com recheio de sardinha do Pacífico.
Foi nesse distrito que guardo uma experiência afetiva.
Caminhando pelo barranco, que fica em frente ao Pacífico num ponto alto, por
isso o nome barranco, tem restaurantes chiquérrimos, há uma condição meio
triste: peruanos pobres ficam em frente aos restaurantes para atrair turistas
aos empreendimentos que os contratam. Conheci um desses peruanos que
trabalhavam para um restaurante e o convidei para jantar comigo. Todos no
restaurante me olharam com olhar de censura, sobretudo o dono. Foi aí que ele
me contou sua triste história. Morava com sua mulher e dois filhos em Arequipa
quando do terrível terremoto de 2006 matando 200.000 peruanos. Sua
mulher e dois filhos foram vítimas. Sem ter o que fazer, foi para Lima, em
busca de emprego e sobrevivência. Suas noites são absurdamente solitárias.
Não há uma só noite que não se lembre de sua esposa e filhos.
Em Cuzco, num restaurante popular, bem próximo à Praça das Armas
e onde Atahualpa, o último imperador inca, foi morto, um peixe frito somente
com limão, e muito, muito milho com toda a variedade de cores e formatos da
agricultura peruana.
Em Lisboa, no bairro do Baixo-Chiado, da qual São Luís é réplica,
um suculento bacalhau à galega, alto, posta grossa, muito azeite e uma garrafa
de vinho da casa.
Em Salamanca, na Espanha, perto da Igreja onde Colombo
discutiu com a cúpula sobre a viagem de circunavegação, uma paella e toda a sua variedade de
ingredientes.
E por fim, a Itália. Nem tanto pela desmesura do prato, mas
pelo sentido cultural, afetivo e emblemático de como a comida
está engendrada na história dos povos. Meu amigo César Paltrinieri,
após eu ter dito que fazia capelleti em minha casa, levou-me para a região
onde esse prato nasceu, proximidades de Monza. Na passagem, convidou
seus três melhores amigos. Ao chegar ao restaurante o dono fez uma
pegadinha comigo: me ofereceu uma colher de azeite balsâmico. – Fantástico!!!!
respondi... Ele se ofendeu e disse que eu não entendia nada de azeite e mostrou
o que ele escondera segurando a mão esquerda para trás: um azeite especial que
estava guardado havia 6 anos. – “o verdadeiro azeite leva tempo para depurar,
meu jovem”... Depois, veio enfim o capelleti,
preparado a 6 cozimentos de 6 tipos de carnes diferentes. Ao provar, fiz aquele
gesto de quem está sorvendo o maior manjar dos deuses. Todos nós nos servimos.
Foi aí então que entendi como os italianos se relacionam a partir da mesa. Meu
amigo César achou fabuloso, já Geovane disse que não estava bom porque o capelleti havia descido na garganta muito
rápido, prova de que a massa não havia depurado suficientemente. Começou a
discussão. Durou duas horas. Meu péssimo conhecimento da língua italiana me
deixou atônito. Não entendi porque uma simples discussão sobre o capelleti poderia gerar tanto celeuma. Esses
quatros grandes amigos se reúnem uma vez por semana em um restaurante
para falar sobre a vida, sobre comer e lembrar ....
A comida é sinestésica, ela nos remete a outros
sentidos; hoje eu entendo por que gastronomia é além de mera comilança...
aguardo ansiosamente os depoimentos de quem quiser narrar
sua experiência.
EXCELENTE CRÔNICA DE SUAS AVENTURAS GASTRONÔMICAS PELO MUNDO... NÃO ME SURPREENDO O PORQUE DE SEU PORTE DE UM DEGUSTADOR (EUFEMISMO) UNIVERSAL... MAS GOSTARIA DE LANÇAR AQUI MINHA IMPRESSÃO ACERCA DE UM MOMENTO GOSTOSO QUE TIVE SOBRE A GASTRONOMIA, A QUAL FUI PROTAGONISTA EM MONTAR UM PRATO SIMPLES, NO IMPROVISO, MAS QUE DEU CERTO...
ResponderExcluirEstávamos comemorando o desfecho da apresentação da Monografia de nosso amigo Diabinho, vulgo, Jonadabe, pela manha, no então Box de Dona Luiza (tia Lulu, para os íntimos), então aconteceu uma situação inusitada, porém, normal para o antigo casal (Dayse Pestana e ****). *** Esqueceu um peixe no congelador e Dayse veio em seu encalço, pois ele havia esquecido de comprar o galão de água para a casa... Bem isso no momento não vem ao "causo"! Portanto, ao chegar, depois de discussões de várias cervejas durante do dia, Dayse nos convida para sua casa onde morava na rua da Saúde, Centro Histórico. Fomos até lá, e ao depararmos com uma imensa "larica", fomos à procura do que comer em sua geladeira. Tal espanto, encontramos quase nada... mas do nada conseguimos desenvolver um prato inusitado com nossas percepções sinestesicamente alterada. Fritamos o peixe, refugamos com extrato de tomate e, ao final, próximo ao ponto, acrescente uma maça que cortei em cubos... FICOU UMA DELÍCIA... NÃO SOBROU PARA CONTAR "ESTÓRIA" NENHUMA!!!
Portanto, no sufoco e nas situações mais improváveis e envolto à boemia, tudo pode-se resolver...